Data de publicação: Jun 10, 2014 11:48:44 PM
O Bardo na Brêtema
Por Rudesindo Soutelo (*)
“Questão central no Processo de Bolonha é o da mudança do paradigma de ensino de um modelo passivo, baseado na aquisição de conhecimentos, para um modelo baseado no desenvolvimento de competências”, lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei 74/2006. Para o Currículo Nacional do Ensino Básico já vigorava esse modelo desde o decreto 6/2001, que estabelecia princípios orientadores “visando favorecer o desenvolvimento de competências numa perspetiva de formação ao longo da vida” (artigo 3º h). Há um século, essas ideias geraram uma ciência da educação para uma Pedagogia Nova, deslocando o foco de atenção desde o professor (magistrocentrismo) para o aluno (puerocentrismo), mas não consolidaram uma tradição de comportamentos humanos que transformasse a sociedade.
Entre avanços e recuos, o Despacho 17169/2011 do Ministério da Educação e Ciência afirma que as competências “se vieram a revelar questionáveis ou mesmo prejudiciais na orientação do ensino” e, levantando a bandeira ideológica, argumenta que “menorizou o papel da transmissão de conhecimentos” e ainda “da memorização”. O decreto 6/2001 e o documento das Competências Essenciais[1] ficaram, assim, revogados e o Despacho 5306/2012 anuncia Metas Curriculares que, na música, estão ainda por definir. “O espírito de disciplina, trabalho, esforço, persistência e concentração deve ser desenvolvido nos estudantes de forma sistemática e progressiva”[2], afirma Nuno Crato no seu livro O ‘eduquês’ , e conclui “O ensino tem de formar elites” e apresentar vias alternativas para os menos favorecidos[3]. Com os próximos ministros voltaremos a ter avanços e recuos porque ninguém quer arriar a bandeira ideológica para iniciar um consenso sobre o modelo de ensino e de sociedade.
Nos finais do século XIX houve uma quebra paulatina dos valores burgueses que deram origem a duas guerras mundiais e grandes mudanças sociais, políticas e económicas. O pensamento e as artes anteciparam essa transformação que acabou por se chamar “modernismo”. Já desde Karl Marx, o pensamento humano deixara de ser a vontade própria para ser uma interação social e económica. Sigmund Freud conseguia interpretar o mais intangível do acontecer humano: os sonhos. Albert Einstein curvava e relativizava o tempo, simbolizado por Dalí nos relógios brandos. Os poetas abandonaram a rima, os pintores prescindiram da figuração, a música ultrapassou a tonalidade. As certezas hesitam e as verdades mentem.
Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) experimenta, com os seus alunos do Conservatório de Genebra, uma nova pedagogia que torna a música uma experiência corporal e sensitiva. O belga Edgar Willems (1890-1978) aperfeiçoa um método de iniciação musical para o desenvolvimento da personalidade da criança baseado na experiência sensorial. Justine Ward (1879-1975) desenvolve um método centrado no Canto Gregoriano. Zoltán Kodály (1886-1966) faz do canto a essência do célebre sistema educativo húngaro. Carl Orff (1895-1982) introduz a percussão e o ritmo nas escolas. Maurice Martenot (1898-1980) insere o instinto e as reações psicosensoriais na iniciação musical. Shin'ichi Suzuki (1898-1998) experimenta o método natural de aprender ouvindo.
Curiosamente nenhum destes pedagogos aparece nos manuais de pedagogia que não sejam especializados em música, e se os mencionamos num exame de pedagogias, mesmo que seja num curso de ensino de música, corremos o risco de ser reprovados por desviar-nos da matéria. Comparando o impacto da nova pedagogia musical na sociedade com a penetração das ideias dos grandes nomes da Pedagogia Nova como Pestalozzi, Montessori, Freinet ou Piaget, observamos que a evolução das novas pedagogias, embora não seja sistémica, é muito mais visível na iniciação musical do que no resto. Certamente que uns e outros fracassaram no seu intento de criar um homem novo capaz de transformar a sociedade. O século XX foi o mais genocida de toda a história da humanidade.
As ideias da Pedagogia Nova fundamentam-se nas utopias humanistas desde a de Thomas More (1478-1535), que cunhou o termo Utopia; ou a de François Rabelais (1483-1553), que no final da sua obra Gargantua, descreve a utopia pedagógica da Abadia de Thélème que tinha como única regra: “Faz o que quiseres”[4]; passando por A cidade do sol de Thommaso Campanella (1568-1639) ou a Nova Atlântida de Francis Bacon (1561-1626) que baseia a felicidade no avanço científico e tecnológico; até o Émile ou De l’éducation (1762) de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que pretendia atingir o paraíso na terra. Rousseau, filósofo incontornável por textos como Du contrat social ou Principes du droit politique, é um compositor banal e insignificante que assume a tarefa de redigir todas as vozes de música da Enciclopédia de Diderot e d’Alambert defendendo caminhos obsoletos que não inspiram qualquer pedagogia musical evolutiva.
A Pedagogia Nova nunca alcançou o poder e portanto não se consolidou. Não deixa de ser paradoxal que, ainda hoje, haja professores que peçam aos alunos para expor os princípios daquela Pedagogia Nova, com a técnica do papagaio. A filosofia da nova legislação educativa não gosta, em palavras de Nuno Crato, de “reformulações drásticas nem de reviravoltas pedagógicas revolucionárias”[5], daí que o recuo é compreensível, mas o fracasso da Pedagogia Nova foi mudar a técnica de ensino para continuar a ensinar as velhas matérias e até os mesmos valores decadentes do século XIX. Foi um remendo de pano novo em vestido velho. A pedagogia não é um fim em si mesma e por si só, não transforma a sociedade. A mudança do modelo social, político, económico ou de pensamento precisa de um novo tipo de conhecimento e é isso que exige uma alteração pedagógica para modificar os comportamentos humanos. O vinho novo tem de ser posto em odres novos.
Nos inícios do século XX, apareceu na Europa um novo paradigma musical que ultrapassava o já caduco sistema tonal romântico. Essa Nova Música gerou a sua própria pedagogia mas esta não se inspirou em utopias, antes na dúvida e o ceticismo de um Michel de Montaigne (1533-1592) que formulou assim a primeira finalidade do ensino: “antes a cabeça bem feita, que bem cheia”[6]; ou no examen rerum [examem das coisas] que o francês portugalego Francisco Sanchez (1550-1622) –nascido em Tui e batizado em Braga mas que abandonou definitivamente a península sendo ainda uma criança– enuncia na sua obra Quod nihil scitur [Que nada se sabe][7].
A música do século XIX já tinha a sua própria e genuína pedagogia profissional baseada em escalas e exercícios técnicos próprios do sistema tonal. Qualquer mudança só podia desestabilizar uma tradição interpretativa e uns valores estéticos que se consideravam absolutos e, portanto, não precisavam de evoluir, o qual paralisou a implantação da Nova Música. A pedagogia oitocentista, com pequenos ajustes, continua a ser a melhor escolha para dominar tecnicamente aquele repertório e, ainda, para todas as músicas e musiquetas posteriores que continuam a alimentar-se dos valores pré-modernos.
Em 1911, Arnold Schoenberg (1874-1951) publica o Harmonielehre, obra que faz a transição da velha para a Nova Música –do sistema tonal para um sistema de tonalidade complexa– e vai ser o fundamento de toda a evolução posterior da música, iniciando uma lenta mas firme mudança no pensamento estético; enfrentando a confusão, a bruma, a incerteza e a contradição. Schoenberg pressagia o desenvolvimento das ciências do artificial ou do impreciso, antecipando-se à conclusão de Abraham Moles (1920-1992): “Foi na pesquisa da precisão que se encontrou a imprecisão”[8]. O motor da Pedagogia Nova de Schoenberg é “a busca, fonte que gera o importante”, e acrescenta: “somente se busca por buscar”[9]. Esse princípio pedagógico antecipa o que, sessenta anos depois, Herbert A. Simon (1916-2001) define como ‘planeamento sem objetivos finais’ e afirma: “O resultado final das nossas opções é o estabelecimento de condições iniciais para o passo seguinte da ação”[10]. Edgar Morin (1921) concluirá mais tarde que “apenas o pensamento complexo nos permitirá civilizar o nosso conhecimento”[11].
Foram precisos noventa anos para ter a primeira tradução do Harmonielehre em português. A tonalidade complexa de Schoenberg não é uma banalidade utópica mas sim uma realidade permeável que transforma lentamente o comportamento humano face uma sociedade nova. Os que nunca leram Schoenberg repetem, como papagaios, que a sua música é atonal, como se fosse possível fazer música sem tons. O pensamento complexo de Schoenberg, utilizando as palavras de Edgar Morin, “abre-nos o futuro se acaso a humanidade vier a ter um futuro”[12].
É difícil não concordar com Nuno Crato, quando critica o romantismo da Pedagogia Nova que “conseguiu uma proeza espantosa: uma perfeita aliança entre o idealismo romântico mais ingénuo, o construtivismo mais atávico e o mais cego dogmatismo da velha e caduca «escola nova»”[13]. Mas dizer que o desenvolvimento das competências é responsável pelo fracasso educativo é um exagero ideológico.
Guy Le Boterf, especialista em avaliação de competências e que tem atuado largamente em Portugal, considera que um profissional que age em competência, e que é reconhecido como tal, ativa três dimensões do profissionalismo: A dimensão dos recursos disponíveis; a dimensão da ação e os resultados que produz, isto é, as práticas profissionais e o desempenho; e a dimensão da reflexividade, da análise dos recursos e das práticas para melhorar a sua competência[14]. É certo que o documento das Competências Essenciais carecia de concreção, mas renunciar a uma sociedade de indivíduos competentes é um atavismo.
Schoenberg, há um século, afirmava: “formação, hoje, significa saber um pouco de tudo sem compreender nada de coisa alguma”[15]. Não evoluímos muito nos últimos cem anos, porque o papagaio nem desenvolve competências nem tem a faculdade de pensar. Se o papagaio não formar parte das elites, “a via alternativa para os menos favorecidos ou menos dotados”[16] é a submissão.
(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística.
© 2013 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 22-III-2013)
[1] Ministério da Educação. (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico - Competências Essenciais. Obtido em 22 de março de 2013, de http://www.dgidc.min-edu.pt/ensinobasico/index.php?s=directorio&pid=2
[2] Crato, N. (2010). O 'eduquês' em discurso directo - Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista. Lisboa: Gradiva, p. 118.
[3] Ibid. p. 119.
[4] “Fais ce que voudras”. Rabelais, F. (1913). Gargantua et Patagruel. Paris: Larousse. p. 140.
[5] Crato, N. op. cit. p. 115.
[6] “Qui eust plustost la teste bien faicte, que bien pleine”. Montaigne, M. d. (2004). Les Essais - Version HTML d'après l'édition de 1595. Obtido em 22 de março de 2013, de La page de Trismégiste: http://www.bribes.org/trismegiste/montable.htm, cap. XXV.
[7] Sanchez, F. (1581). Quod nihil scitur (http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k49823t ed.). Lugduni (Lyon): Apud A. Gryphium, p. 32.
[8] Moles, A. (1995). As ciências do impreciso. (P. Barbosa, Trad.) Porto: Afrontamento, p. 33.
[9] Schoenberg, A. (2001). Harmonia. (M. Maluf, Trad.) São Paulo: UNESP, p. 32.
[10] Simon, H. A. (1981). As ciências do artificial. (L. M. Pereira, Trad.) Coimbra: Arménio Amado, pp. 277-278.
[11] Morin, E. (2008). Introdução ao Pensamento Complexo (5ª ed.). Lisboa: Instituto Piaget, p. 23.
[12] Ibid. p. 147.
[13] Crato, N. op. cit. p. 113.
[14] Le Boterf, G. (Junho de 2006). Avaliar a competência de um profissional. Três dimensões a explorar. Pessoal, 60-63.
[15] Schoenberg, A. op. cit. p. 33.
[16] Crato, N. op. cit. p. 119.
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