Data de publicação: Jun 09, 2014 11:52:49 PM
O Bardo na Brêtema
Por Rudesindo Soutelo (*)
No ano 1973, John Blacking, define a música como um produto do comportamento dos grupos humanos, “seja formal ou informal: é som humanamente organizado”[1].
É certo que o modernismo já iniciara um processo de valorização da arte popular mas o dilema de ‘alta’ e ‘baixa’ cultura continuou referindo-se a herança europeia; o resto das culturas foram etiquetadas como ‘exóticas’. Blacking chamou a atenção para essas “inadequadas e enganosas ferramentas conceptuais” porque “o que precisamos saber é que sons e que tipos de comportamento, nas diferentes sociedades, decidiram chamar de «musicais»”[2].
O etnocentrismo ocidental começou a diluir a sua hegemonia cultural, política e económica, deixando um espaço cada vez maior para as inúmeras sociedades emergentes e culturas diferentes que nos obrigam a repensar a própria organização social e os valores que queremos promover.
Kant foi, no século XVIII, quem alertou de que todo o conhecimento começa com a experiência, mas acrescentou que “embora esta nos diga o que é que existe, não nos diz que tenha que ser necessariamente assim e não de outra maneira”[3]. Para experimentar essas outras formas de conhecimento, o artista ocidental teve de abandonar a sua torre de marfim e sair para a rua, criando os novos mitos que expliquem a ordem do mundo e inspirar confiança à sociedade que integra.
Claude Lévi-Strauss diz que após o humanismo aristocrático do Renascimento e do humanismo burguês, exótico, do século XIX, surge o humanismo democrático que “apela à reconciliação do homem e da natureza, num humanismo generalizado”[4].
O artista, hoje, é um antropólogo social e cultural que desenvolve uma lógica das qualidades sensíveis do som, da cor, do sabor, da textura, do cheiro, e “escolhe, combina ou opõe estas qualidades para transmitir uma mensagem, de alguma forma, codificada”[5]. Nessa lógica, Lévi-Strauss não exclui a convergência do pensamento científico e do pensamento mítico do mundo sensível inerente ao funcionamento do espírito; e Blackinginsiste em que a análise da música na cultura deve ser “sensível ao contexto”[6].
Esse contexto, no mundo ocidental é prioritariamente urbano, onde a natureza se faz burgo e habita em nós. Reconciliados com a cidade, podemos humanizá-la com uma nova mitologia que reduza a voracidade do cartesianismo financeiro.
Diz Arnold Schoenberg que “a ordem não vem exigida pelo objeto, mas pelo sujeito” e “quando se compreende, procuram-se as razões, encontra-se a ordem, percebe-se a clareza”[7].
O pensamento sensível da sociedade, encabeçado pelos artistas, será o artífice de um burgo sustentável, de uma cidade inteligente.
(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística.
© 2013 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 30-XII-2013)
Este texto, redigido originalmente em castelhano, foi escrito para folha de sala duma exposição de Ricardo Brito no México com o título “C. I. Burgo”... (cidade inteligente).
[1] Blacking, J. (2010). Hay música en el hombre? (J. Ayats, Trad.) Madrid: Alianza Editorial, p. 38.
[2] Ibid. p. 31.
[3] Kant, I. (1990). Crítica de la Razón Pura. (P. Ribas, & J. Llinares, Trads.) València: Universitat de València, p. 44.
[4] Lévi-Strauss, C. (2012). A Antropologia Face aos Problemas do Mundo Moderno. (P. Vidal, Trad.) Lisboa: Círculo de Leitores, p. 63-64.
[5] Ibid. p. 128.
[6] Blacking, J. op. cit. p. 47.
[7] Schoenberg, A. (2001). Harmonia. (M. Maluf, Trad.) São Paulo: UNESP, p. 72-73.
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