O Bardo na Brêtema
Por Rudesindo Soutelo (*)
“Nenhuma burocracia pode funcionar a não ser que aqueles que se lhe encontram sujeitos adotem atitudes, hábitos, crenças e orientações específicas” diz Bruce Curtis, mas “estas atitudes, hábitos, crenças e orientações não emergem de uma necessidade técnica; são o produto de conflitos complexos e prolongados”[1].As Academias e Conservatórios de Música iniciaram muito recentemente um processo de democratização forçada pela universalização do regime articulado no ensino vocacional da música, e a sua cultura organizacional e pedagógica demanda uma pro-funda reflexão para acompanhar as mudanças. Os paradigmas de liderança precisam de legitimação mas antes é preciso saber qual é a função que a sociedade reserva para este tipo de instituições. Será o papel ‘reprodutor’ que tinha nas suas origens? O nome de conservatórios é significativo pois historicamente contribuíam para conservar a sociedade. Ou será que devem assumir um papel ‘transformador’ da sociedade? A chave, como indica Mariano Fernández-Enguita em Educar em tiempos inciertos, não está na escola, mas na sociedade à sua volta[2].
Durante séculos, as mudanças sociais aconteceram lentamente e em setores minoritários. Eram mudanças supra geracionais e quase impercetíveis. Mais recentemente as mudanças começaram a fazer-se mais patentes de uma geração para a seguinte e abrangendo setores mais relevantes da população. Atualmente as mudanças acontecem de forma generalizada e até várias vezes numa mesma geração. De uma sociedade estática, onde os valores educativos e, neste caso, artísticos eram incontestados, passamos para uma sociedade em transformação onde uma educação ideologizada foi utilizada como principal instrumento de mudança. Neste momento em que “as sociedades estão a mudar de maneira errática ou imprevisível, a escola vê-se imersa num desconcerto”, afirma Fernández-Enguita[3].
O ensino vocacional da música foi durante séculos assente na música erudita ocidental e era isso o que se esperava das instituições de ensino de música. Os que demandavam essa educação para si ou para os filhos eram já portadores de uns códigos culturais que valorizavam a música erudita. Ao longo do século XX estas instituições mantiveram-se fiéis a esse princípio mas ficaram ancoradas na erudição do século XIX, ignorando qualquer movimento modernista que contrariasse o seu obsoleto romantismo. Ainda assim, continuavam a ser procuradas pelas elites sociais que lhe atribuíam o papel ‘reprodutor’ ou de conservação dos modelos hierárquicos da sociedade.
A chegada massiva de alunos aos conservatórios e academias, com o regime articulado, representou uma democratização do ensino da música quanto a oferta e possibilidades de escolha, mas instalou a dúvida de se deveria continuar a chamar-se ensino vocacional da música ou passar a denominar-se educação musical como no ensino genérico. Formar os futuros profissionais da música ou formar pessoas que gostem da música. Esse primeiro debate está por fazer e o Ministério não mostra vontade de clarificar a situação mas é uma questão crucial para encarar a pedagogia dum modo profissional e responsável.
Por outra parte, Michael W. Apple diz-nos que “o fascínio atual com os sistemas de gestão e redução de custos de forma a tornar-nos mais eficientes e produtivos”, como um constructo ético que envolve escolhas morais e políticas, “baseiam-se no discurso económico, como sendo a forma primária de agir no mundo”[4]. Neste processo de mercantilização “a democracia jamais será vista como um conceito político, mas sim como um conceito económico. A democracia reduz-se ao estímulo das condições de ‘escolha livre do consumidor’ num mercado posto em liberdade”[5]. Esta ênfase neoliberal para fazer do mundo um vasto supermercado onde tudo, mesmo os alunos, são mercadoria que gera lucros, está a esvaziar o conhecimento da componente do ‘trabalho intelectual’ sério.
Qual é, afinal, a pedagogia que deve orientar o trabalho dum professor no assim chamado ‘ensino vocacional da música’? Nesse contexto, toda a liderança carece de legitimação, mesmo que esta fosse fruto dum processo de eleição democrática, porque ninguém pode liderar quando desconhece os objetivos, e as práticas culturais e sociais do dia-a-dia divergem. Só as relações de domínio podem assegurar o discurso economicista.
Os professores do ensino vocacional da música foram formados durante séculos num modelo de raiz elitista e de pronto veem-se confrontados com uma realidade desconhecida e sem ferramentas pedagógicas nem intelectuais para agir. O Ministério está a aplicar uma ‘revolução’ no ensino da música mas sem explicitar em que consiste nem para onde se dirige. As direções das academias têm que gerir a imprevisibilidade do Ministério contratando ou dispensando professores de um dia para outro, ou modificando a carga letiva dos alunos, ou mesmo das disciplinas, segundo se publicam Portarias, muitas vezes contraditórias e sempre na última da hora ou já em atraso. A burocracia impregna tudo. Os professores revoltam-se e culpam as direções, reclamando democracia, mas não conseguem definir qual a sua missão nas instituições para além de cumprir o horário e receber o ordenado. Quanto ao ordenado, o Ministério nem sequer cumpre os compromissos contratuais e atrasa os pagamentos vários meses criando situações de desespero económico aos professores e às direções. Alguns professores chegam a suspender os contratos por falta de dinheiro para se deslocarem às escolas. Ninguém sabe para onde caminhamos e assim não é possível criar lideranças.
Por outra parte, nas desistências normais que se produzem em qualquer ensino vocacional, o Ministério, contradizendo o espírito democrático que está na base do regime articulado, aplica um critério reducionista e elimina as vagas dos alunos que abandonam, o que provoca amputações no corpo docente.
Hargreaves, afirma que “Na economia baseada no conhecimento, só a parte emocional das pessoas, a que é mercantilizável e gerível, é objeto da atenção das empresas”[6].
O ensino da música, seja este vocacional ou não, é um capital social que deve ser cultivado. Fukuyama define o capital social como “um conjunto de normas informais e de valores partilhados pelos membros de um grupo que permite a colaboração entre eles” e conclui que “sem capital social não existiria sociedade civil e… sem sociedade civil não existiria democracia”[7]. O capital social, segundo Hargreaves, “suporta a aprendizagem, alimenta-a, encontra um caminho e um propósito para ela”. Os professores devem cultivá-la porque “o capital social é o alicerce da prosperidade e da democracia: desenvolvê-lo constitui uma prioridade educativa”[8].
Neste contexto é que deve entender-se a missão das instituições do ensino de música, no trânsito de escolas de corte elitista, para escolas democratizadas pela força dos acontecimentos. Ainda precisarão de afinar muita coisa para ser plenamente democráticas mas o proceder errático do Ministério também não ajuda.
A cultura é adquirida, não herdada, e provem do ambiente social do indivíduo, não dos genes. Os professores de música precisam de tomar a iniciativa e a responsabilidade da construção do capital social que querem partilhar com os alunos e o resto da sociedade. O Relatório da UNESCO sobre Educação, um Tesouro a Descobrir, identifica “os quatro pilares da educação”: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser[9]. Os dois primeiros formam parte da economia baseada no conhecimento mas os dois últimos põem a ênfase na democracia, no sentido de comunidade, na responsabilidade pessoal e no capital social. Aprender a viver juntos é algo que os professores ainda têm que experimentar se, algum dia, queremos um ensino da música verdadeiramente democrático.
Em Culturas e organizações, Geert Hofstede diz que “Cada um de nós transporta consigo padrões de pensamento, de sentimentos e de ação potencial, que são resultado de uma aprendizagem contínua”. Muitas dessas aprendizagens foram adquiridas e assimiladas durante a infância, onde começa a construir-se a ‘programação mental’ dos indivíduos. “Quando certos padrões de pensamento, sentimentos e comportamentos se instalam na mente de cada um, antes de aprender algo diferente, torna-se necessário desaprender, e desaprender é mais difícil que aprender pela primeira vez”[10].
Quando não há vaga na piscina, a opção de estudar música passa a ser considerada e assim é como muitas crianças começam a tocar um instrumento que tanto elas como seus pais nunca antes ouviram. As metodologias para ensinar e motivar estes alunos não podem ser as mesmas que se aplicavam antes mas esta é uma ótima oportunidade para conseguir novos públicos e ampliar a base social do ensino da música. Ainda bem que não há vaga na piscina.
Como os professores de música não podem ficar à espera da inspiração do Ministério, celebrou-se nos dias 7, 8 e 9 de julho de 2014 em Ponte de Lima o primeiro Simpósio Nacional “Percursos do Ensino da Música” para pôr toda a comunidade educativa a refletir sobre políticas e pedagogias da música, gestão das instituições do ensino da música, como se ensina ou fomenta a criatividade musical e, ainda, um concerto-debate sobre o tema ‘Como nasce um compositor em Portugal’. O Simpósio estava integrado no Festival Percursos da Música e a organização foi uma parceria entre a Academia de Música Fernandes Fão e a Universidade do Minho através do Centro de Investigação em Estudos da Criança e do Instituto de Educação.
O título deste artigo foi-me sugerido pela Doutora Helena Vieira logo que lhe falei da necessidade de iniciar um debate público sobre a questão e começarmos a organizar o Simpósio. David Hargreaves diria que “As equipas são valiosas, quando se baseiam em relações entre as pessoas e são movidas por um propósito moral partilhado”[11].
(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística.
© 2014 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 31-III-2014)
[1] Curtis, B. (1992). True Government by Choice Men? Toronto: University of Toronto Press, p. 121.
[2] Fernández-Enguita, M. (2009). Educar en tiempos inciertos. Madrid: Morata, p. 14.
[3] Ibid. pp. 14-15.
[4] Apple, M. W. (2001). Educação e Poder. Porto: Porto Editora, p. 19.
[5] Ibid. p. 21.
[6] Hargreaves, A. (2003). O Ensino na Sociedade do Conhecimento - A educação na era da insegurança. Porto: Porto Editora, p. 82.
[7] Fukuyama, F. (1995). Trust: The Social Virtues and the Creation of Prosperity. London: Hamish Hamilton, p. 16.
[8] Hargreaves, A. op. cit. p. 83.
[9] UNESCO. (1998). Educação, um Tesouro a Descobrir. São Paulo: ASA, p. 89.
[10] Hofstede, G. (2003). Culturas e Organizações. Compreender a nossa programação mental. Lisboa: Sílabo, p.18.
[11] Hargreaves, A. op. cit. p. 81.